sábado, 31 de maio de 2008

A vontade de descobrir de um homem humilde que ama a liberdade

Historiador de arte reputado, professor catedrático, autor de inúmeras publicações dedicadas ao nosso património artístico, Vítor Serrão fala de cultura, de política e da sua relação com o pai, o também historiador Joaquim Veríssimo Serrão, a quem deu uma grande alegria quando se desfiliou do PCP. Aos 55 anos e já avô, mantém a consciência de esquerda, confessa-se desiludido com o mundo actual e diz que a liberdade nunca é de mais: “Há é mau aproveitamento da liberdade”.

Até que ponto ser filho de um historiador reputado influencia a sua carreira?
Marca e de que maneira. Marca muito. O meu pai é um homem extraordinário, gosto muito dele. Como gostava muito do meu avô também. E de facto nascer no meio de livros é fantástico. Não há dúvida nenhuma. Desde pequenino poder ir à estante e ver um livro de imagens, ver os monumentos e perguntar… Digamos que é a minha conta bancária. Não tenho dinheiro mas tenho uma cultura livresca que nasceu aqui também.
E o interesse particular pela história?
Foi a vontade de descobrir, de entender o que é o homem, a dignidade humana, o combate às tiranias. Coloco-me à esquerda. Tenho ideais, hoje complicados de definir em termos politico-partidários, relacionados com a dignidade do homem, com valores que não têm a ver com esta realidade neo-liberal que nos domina e atrofia. Com este egoísmo que nos tira o ar. O estudo da arte e da cultura ajuda a ter memória, que é fundamental, e a formar uma perspectiva mais digna de um mundo tão cruel como este.
Costuma trocar impressões ou pedir conselhos ao seu pai sobre questões académicas?
Hoje, com a maturidade que a idade nos dá, peço muito mais que noutros períodos em que, enfim, a juventude, as rivalidades, os conflitos ideológicos dividiram mais.
Nunca se sentiu favorecido por ser filho de quem é?Tentei evitar em toda a minha vida tirar vantagem de qualquer empurrão derivado de uma determinada origem familiar. Toda a vida cultivei uma postura muito humilde, muito apagada. Muito interventiva mas muito apagada.
Emancipou-se cedo da asa tutelar do seu pai?
Sim e nunca imaginei acabar por ter uma vida como a do meu pai, de académico, de catedrático, de homem ligado à academia.
O que queria para a sua vida quando era jovem?
Com 20 anos, quando me formei, queria uma vida ligada à cultura, ao património, mas ligada ao poder local democrático. Trabalhei com autarquias, julgando muito honestamente que era através do poder local que podíamos mudar o país.
Mudou de ideias entretanto?
Hoje perdi muito do encanto com o poder local democrático. Tem menos de democrático do que tinha e tem muito de burocrático. É uma máquina que atrofia o verdadeiro amor pelas terras, pelo ambiente, pelo património, pelas comunidades. Devia-se retornar ao espírito de Abril.
Chegou a envolver-se na política nesses anos quentes pós-25 de Abril?
Fui militante e dirigente do Partido Comunista Português durante muito tempo. Até um determinado momento…
Até à queda do Muro de Berlim?
Não, até mais tarde. Por questões de conflitualidade interna que estão já atenuadas, e aparentemente muito longe, afastei-me do aparelho e aprendi a ter uma postura independente. A trilhar um caminho independente, mas sempre à esquerda.
Deve ter sido uma alegria para o seu pai ter-se desfiliado do PCP?Foi uma grande alegria para o meu pai. Mas o facto de hoje me colocar num plano de esquerda independente não tem a ver com qualquer postura anti-comunista. Tenho pena que o Partido Comunista Português tenha seguido determinado tipo de caminhos que em matéria de conflito e de debate dividiram.
Que achou do processo que levou à expulsão de militante do PCP da deputada Luísa Mesquita?Vi de longe, com mágoa, o afastamento desta amiga que tinha feito um excelente trabalho. É uma excelente autarca, uma mulher dedicada ao bem público e à dignidade autárquica.
Ter nascido em França foi um privilégio numa época em que Portugal era governado por uma ditadura?
Era muito pequenino, mas pelo menos aprendi a viver num ambiente arejado…
Tinha 15 anos quando se deu o Maio de 68 em Paris. Viveu esses acontecimentos por dentro?
Era um menino imberbe, estudante do Liceu Camões, que ia a Paris nas férias ter com o meu pai, que estava lá. Era um privilegiado. Nessa altura estive a viver aquela festa nas barricadas, aquele movimento que era um pouco inexplicável mas que respirava liberdade.
Foi aí que cimentou essa consciência de esquerda?Havia também o contacto com refugiados políticos e acho que toda a gente da minha idade nessa altura criticava o regime. Víamos o regime como algo atrofiante. Hoje podemos vê-lo de outra maneira e, enfim, verificar que havia qualidades também naquela gente e naquele período. Mas de uma maneira geral é um regime que não queremos voltar a ver no país.
Era uma desilusão para si passar férias na Paris das barricadas e depois ter de voltar para a pasmaceira lusitana.
Não. A chamada primavera marcelista abria um cheiro de liberdade que indicava que algo ia mudar rapidamente.
Não é difícil adivinhar que viveu o 25 de Abril com grande intensidade.
Estava no Largo do Carmo nesse dia. Vivi a queda do regime em directo.
Trinta e quatro anos depois, que balanço faz da revolução?Com alguma mágoa acho que houve desvios, radicalismos, falta de diálogo. Nunca há liberdade a mais. Há é mau aproveitamento da liberdade, que é muito diferente. Não me arrependo de nada na minha vida, que me lembre, mas vi actos de que não gostei. A todos os níveis. De desmemória, de combate à identidade, de primitivismos reivindicativos que não abriram nada de bom.
Como via a simpatia que o seu pai tinha pelo antigo regime?
Com muito respeito. É um homem digno, um homem honesto com uma frontalidade que justifica o maior respeito.
Essas clivagens políticas nunca perturbaram o vosso relacionamento?Nunca. Pode ter havido afastamentos, mas sempre houve, há e haverá respeito e carinho.
Por: João Calhaz

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

25 de Abril