sexta-feira, 29 de junho de 2007

Crianças, pais, habitantes: recursos da vida local — Perspectivas de trabalho do ICE 1


Os níveis de pobreza e a desigualdade entre ricos e pobres assumem, nos nossos dias, proporções elevadíssimas, embora variando de país para país, como resultado das políticas que nas últimas décadas foram sendo implementadas.
Por exemplo, centrando-nos no espaço europeu e lembrando-nos de um estudo recentemente anunciado em Portugal, verifica-se que a taxa de pobreza é de 16% na União Europeia e de 20% em Portugal, e que a taxa de desigualdade na Europa Comunitária é de 31% e que em Portugal atinge o escandaloso valor de 41% (cf. Rodrigues, 2007)! Como diz R. d’Espiney, pode afirmar-se que, na actualidade, “vivemos num mundo onde está presente a desesperança e a desestruturação” (2007) e, como tal, onde crescem os fenómenos de exclusão.Neste contexto de globalização e de ditadura do económico sobre todas as outras dimensões da vida das sociedades, os espaços rurais surgem-nos numa crise profunda. Isto porque o modelo de desenvolvimento implementado, apostando na centralidade, abandonou e desestruturou tudo quanto é periférico.Em Portugal, particularmente a partir dos finais dos anos de 1950 e início dos anos de 1960, o mundo rural era uma reserva de mão de obra tanto para as periferias de Lisboa e do Porto como, clandestinamente, por causa da ditadura de Salazar, para a França. De lá até cá, os espaços rurais foram sendo sucessivamente abandonados pelas políticas implementadas. Assim, o mundo rural foi ficando sem pessoas e, particularmente nas duas últimas décadas, os poucos que lá nasceram e cresceram entretanto foram fugindo em direcção às terras do litoral. Hoje, alguns desses espaços estão transformados em reserva de paisagem.Daqui resulta a existência de muitas e muitas aldeias por todo o país que se tornaram verdadeiros paraísos para os habitantes citadinos mais endinheirados, ao fim de semana ou em tempo de férias. No entanto, tal não significa que haja uma relação directa entre a presença esporádica dos habitantes da cidade nas aldeias e mais desenvolvimento dos espaços rurais visitados. Se é verdade que a presença de novos habitantes nas aldeias, venham eles de onde vierem, pode ser considerado, como diz Y. Jean (1995), como um factor importante de reconfiguração social, não é menos verdade que essa reconfiguração só se poderá tornar real se esses novos habitantes viverem, de facto, nos espaços rurais, ou seja, se a sua presença neles significar partilha permanente de modos de vida e de saberes e de contributo activo para uma vida melhor para todos.Isto faz-nos lembrar as palavras de F. I. Ferreira (2005), quando considera que, mais do que tornar o mundo rural visitável, é necessário torná-lo habitável por todos quantos ainda lá existem. Por outras palavras, diríamos que se torna necessário apoiar as ruralidades existentes, contribuindo para a construção colectiva de novas ruralidades que correspondam a uma vida com direitos. São, portanto, ruralidades que, mais do que também já significarem a possibilidade de estacionar um carro à porta de casa ou de possuir todos os aparelhos electrodomésticos, resultam de uma vivência comunitária que promove olhares críticos sobre a vida e o mundo próximo ou longínquo e que favorecem a construção permanente de alternativas para os lugares que se habitam. Por outras palavras, ainda, são ruralidades que resultam do facto dos habitantes rurais se transformarem em sujeitos activos e pró-activos dos seus destinos comunitários, em vez de se manterem como consumidores mais ou menos passivos da cultura urbana que os subjuga. É nesta perspectiva que se situa o trabalho que o ICE vai construindo, ano após ano, no âmbito de vários projectos em meio rural. Significa, portanto, trabalhar para “dar espaço ao local, tempo à sua afirmação, poder ao seu poder…” (Espiney, 1997:10), assumindo a modernidade como um direito para todos e questionando permanentemente as lógicas dominantes.A revolução de 25 de Abril de 1974 trouxe aos portugueses a possibilidade de viverem em democracia, coisa que lhes estava vedada há 48 anos. Como dizia o poeta José Carlos Ary dos Santos, Portugal era “um país onde entre o mar e a guerra vivia o mais infeliz dos povos à beira-terra”.No início, a aprendizagem da democracia fazia-se em cada bairro ou lugar, participando activamente com palavras e actos colectivos de grande entusiasmo. As pessoas uniam-se para provocar a mudança, tanto de maneira informal como dinamizando espaços associativos já existentes ou construindo novos.Em 25 de Abril de 1976, os portugueses tiveram oportunidade de participar nas primeiras eleições livres do pós-revolução. A afluência às urnas foi enorme. Iniciava-se, assim, a aprendizagem da democracia representativa à escala nacional.Com o avançar do tempo, a participação nas eleições passou a fazer parte dos hábitos políticos. Simultaneamente, durante esse mesmo tempo, e como os processos de democracia participativa não se dinamizaram, também se aprendeu a não usá-las. Deste modo, o voto de 4 em 4 ou de 5 em 5 anos passou, para muitos, a ter pouca ou nenhuma importância. Esta situação tem representado um dos lados mais visíveis do crescente alheamento dos portugueses face à política, o que se manifesta de formas diversas quando pensamos, também, na vida do quotidiano: a atitude é mais contemplativa do que interventiva e delega-se tacitamente nos outros o poder de resolução dos problemas.É a atitude de consumidor passivo, que se aprendeu ao viver de acordo com a lógica dominante de mercado, que se vai transpondo para as relações políticas, sociais e culturais do dia a dia: embora se manifeste a necessidade de trabalhar em colectivo, tende-se para o individualismo e para a satisfação rápida de necessidades que estão muito mais associadas ao ter do que ao ser. Tudo isto num contexto de aumento das desigualdades e da exclusão no seu sentido mais vasto e, naturalmente, de crescente infelicidade porque não se tem, materialmente, o que se deseja.Estes modos de agir também se verificam em meio rural, cada vez mais penetrado pela cultura dominante, urbano-centrada, onde, por isso, as culturas locais são tendencialmente abafadas ou, no mínimo, são relegadas para um plano secundário.Nesta tendência, afirmam-se perspectivas economicistas de desenvolvimento, eminentemente técnicas, que não tomam em consideração os habitantes locais, a sua identidade, o seu sentir e as suas potencialidades. Coloca-se de parte, portanto, a criação efectiva de condições para a emergência de um desenvolvimento local que seja o resultado de uma construção colectiva em que interagem, de forma equilibrada e justa, factores internos e externos.Assim, na perspectiva de contributo para o desenvolvimento local em meio rural, o trabalho do ICE orienta-se para:
A construção da cidadania, sendo esta entendida como participação activa e pró-activa na vida da comunidade a que se pertence. Mais do que reagir às situações ou aos problemas, trata-se de construir alternativas de mudança, que vão ganhando corpo de inovação em inovação, a partir do questionamento permanente do que existe. Aposta-se, deste modo, em processos de mudança das relações de poder.
A ressocialização, ou seja, o desenvolvimento de novas relações das pessoas entre si e com o contexto. Trata-se, por um lado, de um trabalho em que se promove o estabelecimento ou o aprofundamento de relações comunicacionais intergeracionais, com base na informalidade, partindo do pressuposto do reconhecimento dos saberes, das capacidades e das competências que cada grupo geracional possui; trata-se, por outro, de um trabalho de promoção de relações inter-institucionais e inter-locais que configurem um desenvolvimento em parceria, em rede.
A indução de expectativas, ou seja, um trabalho desenvolvido a partir e com os desejos das pessoas; um trabalho que radica na escuta sensível do outro, que promove a sua valorização. Trata-se, por isso, de uma intervenção orientada para a promoção da sua felicidade.
A requalificação do património, sendo esta entendida como o desenvolvimento de novos olhares sobre o que existe a nível local e a busca colectiva de novas funções para esse mesmo património. Trata-se da valorização do património existente através de um trabalho em que se reflecte sobre os sentidos da sua existência, se procuram formas de o preservar e se constroem novas formas de relação com ele. Trata-se, portanto, de um trabalho de recriação do património existente.
A operacionalização destes propósitos ganha corpo e sentido em vários projectos que nascem e se desenvolvem em espaços geográficos diversos do território português. Possuem, por isso, uma identidade própria. No entanto, e apesar da sua diferença, estes projectos materializam-se a partir de algumas linhas estratégicas matriciais que, simultaneamente, são também metodológicas.A ressocialização passa pela criação de espaços de interacção. Estes espaços assumem configurações diferenciadas. Tanto podem ser de ordem informal – grupos que nascem a partir do reconhecimento da necessidade de uma aproximação das pessoas e que, assim, se juntam para discutir sobre a vida e o mundo – como podem ser espaços organizados em torno do desenvolvimento de uma ideia, de uma actividade ou de um projecto. Quer uns, quer outros têm duração variável – uns, surgem com carácter pontual, outros prolongam-se no tempo de acordo com as dinâmicas e necessidades do grupo.Estes espaços de interacção são alimentados pelos contributos de vários grupos geracionais. São espaços em que habitantes de idades diferentes participam, experienciando exercícios democráticos de opinião, de proposta e de construção.São espaços de grande alcance educativo porque resultam de actos de cultura em que se cruzam processos de socialização entre grupos da mesma faixa etária e processos de socialização vertical descendente e ascendente, promovendo o desenvolvimento de competências, a descoberta de recursos e a construção de aprendizagens. São, portanto, espaços de cidadania em que tanto as crianças e jovens são assumidos como sujeitos de direitos, logo, competentes, com vez e voz, como os mais velhos têm condições para verem valorizada a sua memória, que funciona, assim, como ponte para a modernidade. Estes processos de ressocialização proporcionam aprendizagem e construção democrática em colectivo. Enquanto espaços de interacção numa perspectiva pró-activa, possibilitam, por isso, processos de alteração do património existente. Processos estes que resultam de exercícios de reflexão e de acção em que, a partir da interpelação do presente e de buscas no passado, se misturam ingredientes que alimentam possibilidades de construção de um presente-futuro.É, portanto, um trabalho que, estratégica e metodologicamente, assenta na valorização ou promoção das culturas locais, através de processos que possibilitam, simultaneamente, ultrapassar passados pontuados pela tristeza e futuros marcados por grande incerteza.De acordo com as dinâmicas de cada grupo e com as possibilidades de desenvolvimento de parcerias de acção, assim se vão construindo projectos locais, de base colectiva, assentes na partilha e na cooperação. Porque correspondem a exercícios de cidadania de grupos específicos, estes projectos desenvolvem-se com objectivos diferenciados, resultando, por isso, em construções locais peculiares.
Joaquim Marques
Referências bibliográficas Espiney, Rui d’ (2007). Notas pessoais retiradas da síntese final da reunião Interequipas do ICE de 16 de Março de 2007.Espiney, Rui d’ (1997). ICE: Um Perfil, Um Percurso, 1992-1997. Uma proposta da sociedade civil. Setúbal. ICE – Instituto das Comunidades Educativas.Ferreira, Fernando Ilídio (2005). O Local em Educação. Animação Gestão e Parceria. Colecção Textos de Educação. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian.Jean, Yves (1995). Estado, Escola e crise dos espaços rurais. in Canário, Rui (org.). Escola Rural na Europa. Cadernos ICE nº 2:33-48. Setúbal. ICE – Instituto das Comunidades Educativas.Rodrigues, Carlos Farinha (2007). Distribuição do Rendimento, Desigualdade e Pobreza em Portugal. Intervenção proferida na Conferência “Compromisso Cívico para a Inclusão”. (disponível em
último acesso em 21/06/2007)

[1] Texto-base da comunicação proferida no Fórum europeu “Crianças, pais, habitantes: recursos da vida local” realizado em Biarritz, nos dias 25 e 26 de Maio de 2007.

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