sexta-feira, 29 de junho de 2007

Censura, omissões, porteiros


1. Sendo as coisas o que são, e é sabido que as coisas na televisão portuguesa estão longe de ser grande coisa, acontece que os chamados “frente-a-frente” que preenchem a segunda parte do Jornal das Nove da SIC-Notícias são dos momentos a que, de um modo geral, vale a pena assistir. Por mim, esforço-me por não perder nenhum, e foi assim que um dia destes assisti ao curto debate havido entre Odete Santos e José Freire Antunes, deputado do PSD. Por sinal foi um debate com moderado antagonismo entre o expresso por uma e outra parte, o que até seria de estranhar dada a presença da ex-deputada do PCP, mas nem por isso foi menos interessante. É que se falou do que, utilizando uma fórmula eufemística, poderá designar-se por “silenciamentos impostos à comunicação social” na sociedade portuguesa actual. Odete, talvez porque gosta de clareza e de ir ao essencial das coisas, falava de censura, explicando naturalmente que há mais censuras para lá do já mítico lápis azul que em Abril de 74 desceu a uma igualmente mítica gaveta e por lá ficou. Freire Antunes preferia falar em “omissões”. É um modo mais “soft” de referir o mesmo efeito, mas talvez a escolha possa ajudar a caracterizar o actual José Freire Antunes, que, como tantos outros, evoluiu muito desde que da Beira Interior desceu à área da capital para escrever no histórico “Notícias da Amadora”, que mais tarde quase se celebrizou ao escrever que Mário Soares terá constado da lista de colaboradores da CIA, que é dos poucos convidados do Jornal da Noite que Mário Crespo trata por tu.
2. O que hoje interessa para aqui, de qualquer modo, é que Odete Santos falou de censura, que a denunciou como realidade actual, tendo sido menos relevante a água tépida que Freire Antunes tentou lançar sobre o assunto. É claro que quando nos maus velhos tempos o corte censório proibia uma notícia, uma foto, um poema, o resultado era uma omissão, para usar a palavra preferida por Antunes. Mas a censura de então, dita “dos coronéis”, era uma forma rudimentarmente tosca de produzir “omissões”, e a democracia conquistada em Abril e, sobretudo, conduzida em “Novembro” à sua “pureza inicial” descobriu outros caminhos. Sei de uma estória infelizmente verídica e de tal modo tão exemplarmente didáctica que me arrisco a contá-la sucintamente. Uma talentosa jornalista, vendo-se desempregada na sequência do encerramento do jornal de Esquerda em que trabalhava, dirigiu-se a um diário de “referência” na busca de novo emprego. Talvez por ser parente próxima de deputados e figuras destacadas da cultura portuguesa, foi amavelmente recebida por alguém com funções de topo no jornal a cuja porta batia. Até que, em dado momento da conversa, alguma coisa pareceu saltar na memória do anfitrião: “— Você em tempos foi comunista, não foi?”, perguntou ele. A jornalista respondeu com verdade e clareza: que não tinha sido, que continuava a sê-lo. Saltou então o verniz do sujeito que tão correctamente a recebia: “— É comunista e tem o descaramento de vir aqui pedir emprego neste jornal? Nem pense nisso, não queremos problemas!”. Como se compreenderá, não garanto a fidelidade textual das palavras, que não é decerto o que mais importa, mas estou certo de que as coisas se passaram, em traços largos, assim.
3. Foi já há uns anos. De então para cá, nada melhorou, tudo piorou. Com óbvia ironia, é justo dizer que o lápis azul se tornou dispensável porque o acto censório passou a ser exercido pelo porteiro do jornal, de cada jornal, que tem instruções para não deixar entrar na redacção quem for minimamente suspeito de “ser comunista”. A generalização do recrutamento de jovens jornalistas (ou, como há anos disse Baptista Bastos, de “simpatizantes” do jornalismo) com vínculo profissional precário, submetidos durante o tempo de formação a verdadeiras lavagens-de-cérebro sintonizadas com o “pensamento único” dominante, garantem a obediência às tácitas ou explícitas orientações das chefias e, em plano mais recuado, do patronato. Como regra geral, nem é necessária a feia acção que seria “comprar” esses jovens profissionais: eles já vêm formatados da fábrica, já sabem muito bem o que está socialmente excomungado e como lhes convém acatar essas excomunhões de que aliás não discordam. As excepções que me perdoem. Mas, se as há, não se notam na chamada “grande imprensa” como na “grande rádio e, o que para estas colunas importa especialmente, na “grande televisão”.
4. De tudo isto, e decerto de muito mais que aqui não cabe, resultam as “omissões” de que falou José Freire Antunes, a censura que Odete Santos denunciou. Sem lápis azul. Porque é moderna. E democrática. E assim os media vão ensinando às gentes, dia após dia, como é o mundo. Sempre de harmonia com o superior entendimento dos que deram ordens para que os porteiros não deixem entrar nas redacções dos jornais, das estações de rádio e de televisão, os que não convenham.
Correia da Fonseca

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