segunda-feira, 19 de março de 2007

Lutas estudantis



Rebeldes com causa


Tudo começou com um pedido (aparentemente) inocente: os estudantes pretendiam comemorar o seu dia a 24 de Março. Para tal tinham pedido autorização superior, mas, naquela manhã, os jovens depararam-se com um cenário que não parecia propenso a festejos, como recorda Artur Pinto, à época, 1962, caloiro de Direito, em Lisboa: “Quando chegámos, a Cidade Universitária estava cercada pela polícia.


partir daí deu-se um conjunto de acontecimentos com proporções que nunca teríamos imaginado.” Mas os dados estavam lançados. As tentativas de Marcello Caetano, então reitor, de negociar com o Governo uma retirada da polícia saíram goradas. Para Artur Pinto, que depois foi publicitário, o Governo temia que as comemorações do 24 de Março viessem a ter dimensões incontroláveis. Meses antes, na inauguração da Reitoria, as associações de estudantes tinham sido relegadas para segundo plano, facto que resultara num episódio constrangedor para o Chefe de Estado: “No dia da inauguração, os estudantes viraram as costas a Américo Tomás. Penso que, por esse motivo, as autoridades receavam o Dia do Estudante. Para além disso, tinha sido constituído o Secretariado Nacional dos Estudantes, que agregava as universidades de Lisboa, Porto e Coimbra. Face a isto, eles pensaram: ‘os gajos estão a unir-se’. Mas a nossa motivação inicial era puramente sindical.”Confrontados com o encerramento da cantina, com o impedimento de os estudantes de Coimbra e do Porto se juntarem aos colegas de Lisboa, com as cargas policiais, os universitários sentiram um crescente sentimento de injustiça: “Começou por ser uma revolta grande perante uma proibição que não fazia sentido. Nós só pretendíamos comemorar aquele dia com coisas normais; tínhamos previsto um baile, um festival desportivo...”
RASTILHO DE PÓLVORA
Estes acontecimentos tiveram o efeito de um rastilho de pólvora. Começaram então as grandes manifestações, a 1 e 8 de Maio, que culminaram com a prisão de 1500 estudantes. O regime de Salazar nunca mais seria o mesmo. Passados todos estes anos, Artur Pinto afirma sentir-se movido pelos mesmos princípios da altura: “Não estou nada arrependido de tudo aquilo que fiz; continuo com a mesma motivação de fundo pelos princípios democráticos e pela liberdade.”O fiscalista Saldanha Sanches ainda estava no liceu, mas já tinha consciência política: “Tudo começou com o Humberto Delgado.” Muito jovem, participou nas manifestações: “Lembro-me de uma, na Baixa, que foi uma coisa épica.” O envolvimento de Saldanha Sanches nos movimentos estudantis prolongou-se até ao 25 de Abril. Pelo meio passou pela extrema-esquerda, da qual se afastou depois da revolução: “Achava-se que o PCP era muito conciliador e o conhecimento do que se passava no Bloco de Leste levava-nos a ter esperança de que a China fosse diferente. Claro que após o 25 de Abril e com a morte de Mao Tsé Tung, essa esperança revelou-se gorada.” Mas isso foi mais tarde, depois das prisões e do casamento com Maria José Morgado. Hoje, o fiscalista mostra desencanto: “Portugal está demasiado mal. Vivemos num ambiente de desconfiança que não pode continuar.” No que diz respeito às lutas estudantis, é da opinião que “hoje em dia é uma questão egoísta”.A crise que se segue ocorre em Coimbra. Para Celso Cruzeiro, hoje advogado, a chamada ‘crise de 69’ ultrapassou a anterior. A queda de Salazar e o Maio de 1968 em França davam ânimo aos jovens que, segundo o advogado, começaram então a “reivindicar modelos alternativos”. Em suma, “questionar o sistema de ensino era só um instrumento. Tratava-se de mudar a universidade, para mudar a sociedade portuguesa, para mudar o Mundo”. Ainda hoje, Celso Cruzeiro afirma não se rever “neste modelo civilizacional: as pessoas não são felizes. Vivemos numa sociedade com profundas desigualdades. Defendo a possibilidade de uma visão alternativa do Mundo”.
MILITÂNCIA CONTRA A GUERRA COLONIAL
Em 1971, Luís Marques, hoje administrador da RTP, estreou-se na luta estudantil. Tinha 18 anos e estudava no Instituto Comercial, palco de uma greve aos exames na qual interveio a polícia de choque: “Claro que a greve era motivada por uma contestação ao sistema de ensino”, diz. Mas por detrás desta motivação encontrava-se “a participação numa luta mais geral, contra o sistema”. Devido ao seu envolvimento e à “militância contra a guerra colonial” foi preso em 1972 e “passou à clandestinidade” até ao 25 de Abril. Questionado sobre as causas que hoje o movem, é reticente: “Já não sou um jovem...”A palavra sacrifício não terá maior significado do que quando aplicada a Ribeiro Santos, única vítima mortal das lutas estudantis. José Lamego era seu amigo e ficou marcado pelos acontecimentos de 12 de Outubro de 1972, na sequência dos quais foi preso e torturado. Foi numa “luta corpo a corpo” contra o agente que acabara de matar o estudante, que Lamego foi ferido a tiro numa perna: “Ele ainda me apontou ao peito, mas já não tinha balas”, refere o actual deputado do PS. Envolvido em lutas estudantis desde 1969, José Lamego conheceu a prisão política por diversos períodos. As principais motivações dos estudantes eram políticas, diz, com destaque para o fim da guerra colonial. Nos dias de hoje, afirma, “gostaria que o País fosse mais desenvolvido, mais culto, mais moderno”.As lutas estudantis da primeira metade da década de 1970 foram dominadas pelo MRPP. Para além dos já citados Saldanha Sanches, Luís Marques e José Lamego, contavam entre as suas fileiras o actual presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, e a procuradora-geral adjunta, Maria José Morgado, na altura conhecida como ‘Mizé Tung’. A actual coordenadora do DIAP, responsável pelos processos do ‘Apito Dourado’, não quis falar sobre este período da sua vida que, segundo o seu marido, Saldanha Sanches, foi vivido com muita intensidade, “tal como é agora o seu trabalho”. Fernando Rosas, historiador, ele próprio um dos contestários, lembra Morgado como “uma activista corajosa que não mudou a sua maneira de ser”. Quanto a Barroso, define-o como “um dos mais importantes líderes do movimento, activíssimo no PREC”. Curiosamente, em 2004, quando ainda era primeiro-ministro, viu o seu boneco queimado por estudantes na Cidade Universitária.
DISPUTAS ENTRE GRUPOS EXTREMISTAS
A seguir à revolução o enfoque das lutas deslocou-se. O combate ao regime perdeu a sua razão de ser mas os anos seguintes foram de disputas entre os grupos extremistas à esquerda e à direita. Foi no PREC que nos liceus foram vividas as sessões de pancadaria diárias.A partir de finais dos anos de 1970, o ambiente vivido nas escolas e universidades conheceu uma acalmia. Apenas alguns resistentes, animados por um sonho de transformação social, insistiram em “animar a malta”. “Tratava-se de queimar os últimos cartuchos”, explica o arquitecto Miguel Mira, hoje professor na Universidade Lusíada. O jovem, que no início dos anos de 1980 já tinha saído da universidade, protagonizou, juntamente com alguns nomes hoje ligados ao Bloco de Esquerda – como Francisco Louçã ou Miguel Portas – a única grande greve da década (1985) que obteve uma adesão de quase cem por cento. “Na verdade, éramos um grupo de malucos”, conta, “e, quase sozinhos, conseguimos mobilizar dezenas de escolas com alguns pretextos que, no fundo, tinham como motivação um sonho de profunda transformação.” A ideia era fazer renascer um associativismo estudantil moribunda. Os motores utilizados para suscitar nos estudantes a vontade de lutar partiam de questões concretas, como “a autonomia universitária, a gestão democrática, os serviços sociais”, mas o objectivo era bem mais abrangente e fazia parte, ainda segundo Miguel Mira, de “uma estratégia global de aproximação ao ‘socialismo científico’. O professor afirma sentir-se ainda hoje movido pelas mesmas causas: “Sou capaz de pegar num pau para defender a liberdade.”Mais suaves eram as motivações do então jovem estudante da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) Rui Zink, actualmente escritor e professor na mesma instituição, quando, em 1984, se envolveu no “único acontecimento dos anos de 1980 em termos de movimentações estudantis que teve algum interesse”. Tratava-se de “um happening/provocação” chamado Pornex 84. Ao longo de cinco dias, os estudantes da Nova empenharam-se em torno da... pornografia. Para Miguel Mira, “a Pornex, tal como os serviços sociais, foi uma invenção” destinada a fazer renascer as associações de estudantes nas universidades. Para Rui Zink, contudo, a motivação era outra: provocar. “1984 era o ano profetizado por Orwell para o advento do Big Brother. Também era o ano em que passava uma década sobre o 25 de Abril. Tratava-se, no fundo, de um teste à liberdade.” Mais de vinte anos passados sobre o Pornex, Zink não se sente muito diferente: “Um certo prazer de provocar continua a ser uma das minhas linhas de conduta. Modifica-se talvez um pouco a dosagem. Digamos que é um terço de liberdade, um terço de pendor didáctico e um terço de provocação”.No final dos anos de 1980 começou a desenhar-se a futura e polémica Lei das Propinas. Foi neste contexto que Sandra Monteiro, hoje directora do ‘Monde Diplomatique’ português, chegou à presidência da Associação de Estudantes da FCSH: “As questões que se colocavam na altura tinham a ver com o modelo de gestão das universidades, o tipo de participação dos estudantes, a garantia do financiamento público, aspectos que hoje, passado todo este tempo, continuam actuais.”
LUTAS ESTUDANTIS VOLTAM À RUA
No princípio dos anos de 1990, as lutas estudantis voltaram à rua. Curiosamente, as movimentações começaram por causa de uma reivindicação dos estudantes do Secundário: a abolição da então implementada Prova Geral de Acesso (à universidade), a PGA. O jornalista e militante do Bloco de Esquerda Daniel Oliveira estava no Liceu Passos Manuel, onde tinha ingressado para terminar o 12.º ano: “Já tinha 21 anos e não tinha qualquer intenção de voltar a ser dirigente associativo. Mas rebentou a história da PGA. No Passos Manuel não havia nada e então pensei: ‘vou fazer isto arrancar’. E marquei uma RGA.”As associações universitárias solidarizaram-se com as manifestações contra a PGA. O contrário não sucedeu na recusa às propinas por parte dos alunos do Secundário. Oliveira sim, “era totalmente contra as propinas”. Tanto que nos anos seguintes as boicotou no ISCTE. Anos mais tarde teve de pagar tudo para poder fazer o mestrado. Na altura, movia-o a luta contra o cavaquismo. No que diz respeito à PGA, Daniel Oliveira congratula-se com os resultados da luta travada: “Foi o único movimento estudantil que obteve uma vitória em Portugal depois de 1974.”Ao nível das universidades, a luta era outra e estava longe de ser consensual. Nuno Fonseca, webdesigner, estava na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra onde se encontrava, recorda, “a única associação académica que era totalmente contra a aplicação da Lei das Propinas”. E explica: as posições nas diferentes associações dividiam-se entre o ‘sim’, o ‘não, enquanto’ e o ‘não’. Fizemos o primeiro referendo alguma vez feito em assembleia magna e o resultado foi um esmagador ‘não’. A 18 de Novembro de 1992 dois comboios cheios de estudantes desceram de Coimbra para Lisboa para uma primeira grande manifestação. “Foram dois anos intensíssimos”, sintetiza Nuno Fonseca, que hoje, apesar de continuar a sair à rua “em todas as manifs”, se acalmou na militância, até porque o trabalho e a paternidade não lhe deixam espaço nem tempo. “Não se tratava apenas da luta contra as propinas”, sublinha. “Também queríamos mais acção social, discutir a qualidade do ensino. Mas, claro, o mais mediático era irmos para a rua gritar ‘não pagamos’. O que aliás, não conseguimos.”Seriam, no entanto, quatro jovens – entre os quais Sérgio Vitorino – a protagonizar o episódio que fez história. Despiram as calças e mostraram os traseiros nos quais estavam escritas as palavras de ordem do movimento. Nascera a ‘geração rasca’.
TESTEMUNHO DE JORGE SAMPAIO
“Participei na direcção do movimento estudantil em 1962, na qualidade de secretário-geral da Reunião Inter-Associações, vulgo RIA, antecâmara da futura Federação Académica de Lisboa.Nesse ano, as lutas estudantis adquiriram grande vigor e projecção, com manifestações, acções de massa e greves, às quais se associaram alguns docentes. Marcelo Caetano era, naquela época, reitor da Universidade de Lisboa e como consequência – não negligenciável – da nossa luta acabou por apresentar a demissão. Mas seguiram-se também prisões, demissões e expulsões porque o regime reagiu com a brutalidade que lhe era conhecida.Estas lutas representaram um momento crítico para o regime e sublinharam afinal a sua dificuldade em controlar e absorver a emergência de um novo protagonista social e político: os estudantes universitários.À distância direi mesmo que o regime nunca se recompôs totalmente do susto que os estudantes lhe pregaram, tendo o nosso protesto aberto caminho às chamadas primeiras ‘eleições’ do marcelismo, em 1969, mas que afinal foram, como se sabe, mais do mesmo.Se é certo que as forças políticas, com os seus prolongamentos repressivos e censórios e com as suas forças económicas autoritárias e conservadoras, ganharam transitoriamente a partida, vieram depois, felizmente, a afundar-se uns anos mais tarde. Estava-se então na madrugada de Abril de 1974.”
GERAÇÃO DE 1960 ENCONTRA A DE 2000
AS CAUSAS DO NOVO SÉCULO
As lutas estudantis não terminam com o séc. XX. O arquitecto Miguel Teixeira foi presidente da Associação Académica de Lisboa entre 2002 e 2003 e orgulha-se de ter “levado para a rua vinte mil estudantes”. As motivações eram as dos anos anteriores: “As propinas, a acção social, a lei de financiamento do Ensino Superior”. Mas também a contestação à guerra no Iraque.CRONOLOGIA1957/58Decreto-lei 40 900 regulamenta de forma autoritária a vida interna das associações de estudantes. Foi alvo de forte contestação, dando início à primeira crise académica.
1962
Crise em Lisboa
A 24 de Março são impedidas as comemorações do Dia do Estudante. Cidade Universitária é cercada.
1968
Maio de 68 em FrançaMarcello Caetano é nomeado Presidente do Conselho. José Hermano Saraiva chega à pasta da Educação.
1969
Crise em Coimbra
O presidente da A.A. de Coimbra é impedido de tomar a palavra numa cerimónia oficial.
1970
Morte de António Oliveira Salazar
Inicia-se o período que ficou conhecido como Primavera Marcelista.
1972
Morte de Ribeiro Santos
A 12 de Outubro de 1972, num encontro de estudantes na Faculdade de Economia, um agente da PIDE dispara a matar sobre um jovem estudante.
1974
Greve geral na Universidade de Lisboa contra a Guerra Colonial.
25 de Abril.
1977
Greve nacional do Ensino Superior.
1983
Bloco Central, PS e PSD partilham o poder.
1984
Pornex
1985
Greve com uma adesão de quase 100%.Cavaco Silva é o primeiro-ministro.
1991
O primeiro grito do “não pagamos” coincide com a luta contra a PGA.
1992
Parlamento aprova primeira Lei das Propinas. Primeiro aumento em cinquenta anos.
1993
24 de Novembro
Manif em frente ao Parlamento. A polícia carrega sobre os estudantes. Greve nacional e poucos dias depois Couto dos Santos é demitido.‘Geração rasca’ Vicente Jorge Silva foi o autor da designação com que ficou conhecida a geração que nos anos de 90 lutou contra as propinas.
Manuela Ferreira Leite (Dez. 1993/Out.1995)Largou a Secretaria de Estado do Orçamento para assumir a pasta da Educação. Estilo implacável.
Myriam Zaluar

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