sábado, 7 de abril de 2007

Tarefa ousada: Reflectir sobre a história recente de Portugal


O historiador António José Telo aceitou escrever um ensaio sobre a História recente de Portugal, do 25 de Abril à actualidade. O primeiro volume acaba de ser publicado e incide fundamentalmente sobre a nossa história desde o dia 25 de Abril até à adesão de Portugal às comunidades europeias (“História Contemporânea de Portugal, do 25 de Abril à actualidade, volume I”, por António José Telo, Editorial Presença, 2007).

O historiador tinha consciência do risco desta tarefa: há lacunas no que toca aos acontecimentos do 28 de Setembro, e verdadeiros “buracos negros” nos acontecimentos do 11 de Março e 25 de Novembro; a história militar do desmantelamento da Guiné só agora começa a ser publicada; permanece a nebulosa sobre a importância do decreto do ministro Sá Viana Rebelo para a precipitação das reivindicações militares; não é ainda transparente a real influência que a extrema-esquerda teve na sociedade portuguesa, sobretudo a partir de 1973 e até ao 25 de Novembro; embora haja estudos fiáveis sobre a evolução das mentalidades e da sociedade após o 25 de Abril, há fenómenos de peso que continuam por determinar caso do papel exercido pelos retornados nas actividades económicas, a evolução das pautas de consumo e as formas do exercício efectivo do poder religioso, por exemplo. Nenhum historiador, como é óbvio, é responsável pela ausência destes estudos, e a História está sempre em processo, sujeita a reapreciações até que o distanciamento separa a ganga do essencial. António José Telo prefere não se refugiar na mítica isenção e entende dar as suas explicações no decurso da narrativa. Optou, sem inibições, por um ensaio “incompleto”, e até por um tratamento desigual das diferentes vertentes. Ele não dirigiu nenhuma equipa de colaboradores, preferiu afoitar-se sozinho na empreitada. Em minha opinião, o resultado é satisfatório como documento de trabalho e fica à mercê dos desenvolvimentos posteriores. Não tenhamos dúvidas, haverá reinterpretações, há lacunas que se preencherão, sabe-se lá quantos livros de memórias menos hagiográficas não retirarão da sombra alguns factos insondáveis que aguardam explicação. Temos o 25 de Abril e a queda de um regime ditatorial quase sem um tiro. Fica-nos a incerteza se Marcello Caetano não buscou a solução menos custosa, sabendo-se sozinho, preferindo a rendição ao novo poder do dia, personificado no General Spínola. A segurança do velho regime, como se viu, era pura ficção e também foi derrotada pela manipulação das transmissões. Sabia-se que a insurreição teria que partir do Exército, já que este era o mais afectado pela Guerra Colonial. É pena que o autor não se tenha socorrido de livros publicados nos últimos 15 anos sobre o desmoronamento da Guiné que comprovam a inevitabilidade do golpe militar. Continua a fazer falta um estudo detalhado sobre a personalidade do general Spínola para entender as suas desastrosas decisões e falta de visão sobre o MFA, a influência dos partidos políticos e o estabelecimento de alianças, por exemplo. O quadro sobre as organizações políticas da época parece-nos completo e porventura poucas novidades trará nas investigações vindouras. O historiador procura interpretar aquilo que ele chama “a deriva comunista”, ou seja, o rumo errático prosseguido pelo PCP entre Outubro de 74 a Novembro de 75, com base nas apreciações feitas por Freitas do Amaral, Mário Soares e aqueles que perfilham a conspiração internacional ao serviço da URSS ou dos EUA. Com os dados actuais, há a registar como irrefutável a ingenuidade de muitos dos actores, a ilusão que tomou o MFA que se julgou narcisisticamente o motor da Revolução, a falta de um centro político que é compreensível à deficiente preparação e inexperiência da generalidade dos militares e dos partidos recém-constituídos. No fundo, como observa o autor, esquece-se a história da própria oposição ao regime ditatorial que lhe deu consistência para ensaiar um frentismo entre as populações que ansiavam a liberdade e os militares que não desgostaram da adulação, até que todos compreenderam que se caminhava para um desastre e daí o pacto de silêncio que se estabeleceu à volta do 25 de Novembro. Acresce ainda a pressão exercida pela esquerda revolucionária sobre os comunistas do PCP e os ideólogos do “socialismo real” dentro do MFA.O historiador documenta com precisão o que os sucessivos governos provisórios procuraram pôr de pé e não foram capazes: levantar a economia, melhorar as condições de vida, controlar a inflação, tudo isto dentro da roda viva que foi a crise internacional (sobretudo a crise petrolífera), as reivindicações que muitas vezes se anulavam umas às outras, as nacionalizações, atmosfera de confronto civil, etc. Igualmente as novas estratégias dos partidos políticos depois do 25 de Novembro e, sobretudo, depois da formação do I Governo Constitucional emergem com clareza, à luz dos dados disponíveis. Todo o historial dos sucessivos governos até Cavaco Silva chegar a S. Bento tem o mérito de uma redacção viva, atraente e clara. A procura de uma estratégia económica para o após 25 de Abril tem a forma de uma síntese habilidosa onde se demonstra que o historiador sabe escrever obras de divulgação. Ele destaca os projectos sonhadores e ilusão com que foram tratados os problemas de fundo, deixando claro que o emaranhado das crises financeiras foi assumido mais lucidamente pelo PS que pagou o preço em 1985: da austeridade passou-se para a modernização e o sonho europeísta, com Cavaco Silva.O capítulo sobre as mentalidades trata de aspectos essenciais como o envelhecimento da população, a mudança do estatuto de emigrante para imigrante, a reestruturação da família, a explosão do sistema educativo e um sistema de saúde que começa a dar sinais de insustentabilidade, já no vasto contexto da crise do Estado-Providência, certamente um dos maiores desafios políticos que vão atravessar toda a sociedade portuguesa nos próximos anos. Enfim, tudo leva a crer que esta reflexão aprofundada, contingente e corajosa de António José Telo vai abrir as portas a outros ensaios necessariamente polémicos, já que a neutralidade não pode existir quando se faz história com actores vivos e a cumplicidade de muitos silêncios comprometedores. A ousadia do historiador valeu a pena. Aguardemos o que ele já tem escrito sobre tudo o que aconteceu desde 1985 até aos dias de hoje.
Beja Santos

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